O adeus de Elsa
Traductor: Alberto Augusto Miranda
Personagem:
Elsa
Um café da boémia noctívaga. À luz de um candeeiro um indivíduo com aspecto de manequim lê o jornal alheio à presença de uma mulher extravagante que se encontra de pé em frente a ele, de olhos lunáticos a retorcer as mãos. Ela é pequena e elegante, de tez muito pálida. Usa óculos e exibe um chapéu fora de moda.
Elsa: Se me conseguir acalmar e tu deixares de ler o jornal, sentar-me-ei ao pé de ti e dir-te-ei porque estou aqui, no teu antro literário... (Espera em vão que ele largue o jornal e senta-se.) Esta mensagem que apareceu debaixo da almofada deixou-me sem ânimo. (Tira o papel e lê) Ou nos vamos os dois ou me vou sozinho... (Pausa.) Aqui está a pistola que deixaste ao pé do papel. (Tira a arma que põe em cima da mesa.) Tenho as letras gravadas na cabeça: Ou nos vamos os dois ou me vou sozinho. (Pausa.) Julgas que te deixava ir sozinho para o outro mundo? Passou-te isso pela cabeça? Que ideia fazes desta ex-professora de língua e literatura? Tantos anos juntos, unidos nas nossas loucuras eróticas, fazendo das nossas depressões uma empresa associada e anónima, convivendo debaixo da atmosfera da paranóia literária e exibindo uma imaginação cívica inédita em casais de poetas. Um estúdio, uma única cama, Mozart, velas, dois escritórios. Escreves tu, medito eu; vem-te uma ideia, eu aplaudo; tenho eu um brilho, aplaudes tu. Tu lês-me, eu leio-te, sempre a partir de uma atitude ética na qual a crítica construtiva é a nossa fada madrinha. Se a colheita de poemas é boa, independentemente de ser tua ou minha, celebramos com champanhe. (Pausa.) Nos cafés de tertúlia recebiam-nos sempre como se fôssemos o casal literário do ano. Ia tudo de vento em popa, os nossos agentes literários acordavam-nos com os seus telefonemas. Contrato para um livro em tal sítio, contrato para livro noutro sítio. E de repente encontro esta mensagem e o revólver. (Pausa.) Ou nos vamos os dois ou me vou sozinho...
(Permanece ensimesmada, com a mão direita no queixo, até que se começa a ouvir uma música que a surpreende de forma feliz; ela levanta-se e canta.)
Que foi que se passou? / Diz à tua pomba / que uma grande nuvem eclipsou / o teu sonho de criar. / Somos dois pirilampos sem pavio / por baixo de um bosque de folhas impressas / Às vezes sou um livro em branco / e tu uma pluma ziguezagueante, / a tua tinta me embriaga e fecunda / e faz-me luzir versos / delgados como fios. / Se te desmoronas, / não há cotovia que voe nem aurora que cintile / nas costas do mar. / Aqui estás, com o teu copo, com o teu lápis afiado, / à caça de uma ideia, / de um verso irisado e / ligeiro como o fumo. / Aqui, na minha fuga, / está o companheiro de viagem, / o amigo de leito e tertúlia, / o que me dá a mão / quando não lha peço, / o que fecunda de sonhos / as minhas noites de insónia. / Esse és tu, / desenho carnal da minha melhor utopia. / Esse és tu, / o viajante solidário / nas minhas travessias pela escuridão. / Esse és tu, / sorriso que não falta / quando a lágrima / impõe o seu estado de sítio; / esse és tu, / mesmo que sejas apenas o espelho aliado / onde nunca assomarão / os fantasmas que me acossam.
(Pára a música, Elsa sugere estar surpreendida com a sua própria canção, esboça um sorriso ambíguo e senta-se enquanto exclama:)
Deixa de esconder a cara atrás do jornal e diz-me o que se passou... Porque é que tens de ir embora? Porque havemos de ir se a vida é um carnaval de beijos, poemas e champanhe? Porquê? Ah! Sou eu que tenho a culpa? Sou mais lida que tu? Autografo mais livros que tu nas férias? Por acaso sou mais entrevistada que tu? Oh meu amor! Fala. Fala. (Pausa.) Fala ou... (Faz o gesto de lhe tirar o jornal onde ele se entrincheira.) Nesta mesa seduziste-me com um poema de amor. (Oferece-lhe um cravo vermelho com um grande caule.) Pega, pega... (Encolhe os ombros e gesticula com a flor.) É uma situação muito embaraçosa a que criaste. Tão embaraçosa que nos estão a deixar sozinhos. Sim, já só está uma pessoa no café. Quase ninguém! Assim agora podemos falar. (Pausa.) Porco! Sim, porco, já não aguento mais. Um casal de poetas cívicos? Uma merda de poetas é o que somos. Agentes literários, entrevistas, reedições? Não passamos de fantoches colados à última etiqueta. Agora o que está a dar? Pós-modernos, minimalistas, miniaturistas? Sempre em busca do fogo sagrado da palavra única. Nada de cadência, nada de emoção, sintaxe nua... O quê? É essa a nossa última bandeira? (Pausa.) Publicámos pouco e mal e no nosso fantástico ninho de amor apenas há, isso!, lixo de versos vazios (Irónica) Uma cama, dois escritórios, Mozart, velas, champanhe... Quanta energia romanesca mal gasta. Sempre me pareceu que os teus apontamentos teriam mais utilidade pública como papel higiénico. Além disso, roubavas-me. Merda! Não te podia contar uma ideia, uma intuição, um projecto de escrita, porque no dia seguinte dava logo conta que tu já os tinhas materializado, embora, claro, com torpeza única. (Pega na garrafa e enche um copo.) Já para não falar quando te descobria de madrugada, em bicos de pés, a espiolhar os meus papéis. (Outra postura.) O plagiador... (Deixa-se cair na cadeira) Na minha cama tinha um delinquente das letras. Fazia amor com um contrabandista de versos. (Bebe.) Reconheço que não saía da minha crise. Pensei que o meu ódio talvez servisse de válvula de escape porque o motor de arranque da minha imaginação estava avariado. (Bebe.) Ódio e amor são fontes de energia, mas tu és o senhor Idiota da modernidade porque nem odiando-te consigo tirar alguma coisa de ti. De que és feito? De lixo poético? (Bebe.) Queres dar a cara? Queres largar o jornal e mostra-te tal como és? Não, não tens valor. Mas agora que estamos frente a frente no teu "buraco boémio" vou-te... (Relê a mensagem) Ou nos vamos os dois ou me vou sozinho. Filho da puta! Mas o que é que te deu para escrever esta porcaria e deixar uma pistola ao lado? (Soluça.) Pensaste: com alguma sorte, a esta individualista de cabelo curto e míope vai saltar-lhe a tampa. (Pausa. Assombrada.) Agora é que estou a ver que planeavas um crime. Claro! (Levanta-se.) Estamos perante um projecto de crime perfeito. (Senta-se.) Assassino! Agora compreendo a tua lógica criminosa. (Pausa.) Este anjo das vanguardas, com os seus vestidos compridos e o seu chapéu extravagante é capaz de morder o anzol e dar um tiro nela. Foi sempre uma excêntrica! (Pega no telefone.) Vou chamar a polícia agora mesmo... (Marca um número.) É da esquadra? Estejam atentos porque um traficante de artes prepara um crime. (Desliga.) Tira os olhos daí! (Acende um cigarro.) Às tantas li mal. Claro. Com três dioptrias (Põe os óculos e lê) Ou nos vamos os dois ou me vou sozinho... (Pausa.) Não, isto não pode ser. (Pausa.) Vejamos... Sujeito: "os dois"... (Pausa.) "nos" dativo ético... (Pausa.) Estamos perante duas orações... Não! Estamos perante uma felonia que exige castigo... (Pega na pistola, aponta ao homem do jornal e dispara; este cai sobre a mesa. Silêncio. Luzes íntimas. Depois soa um telefone, ela duvida, olha inquieta à sua volta e atende.) És tu, amor? Como correu o dia? Uma óptima colheita? Sim, sim, apanho um táxi para casa e lês-me os teus novos poemas... (Ergue-se, tira nervosamente dinheiro do bolso e atira algumas notas sobre a vítima enquanto diz:) Hoje não lhe posso dar mais, obrigado e até à próxima... Sim! Até à próxima. Agora, adeus, adeus, adeus...
(A mulher sai do café enquanto a vítima endireita o busto, recolhe as notas, conta-as minuciosamente, esboça um esgar de conformismo e guarda-as na carteira. Sobem as luzes e o homem volta a ser o manequim do princípio, ocultando o rosto atrás das páginas abertas do jornal.)
ESCURO